15/09/2012

Dissecação e vivissecção na escola

É comum você chegar ao ensino médio e alguém te propor uma dissecação de algum animal na aula de biologia, para "aprender melhor a anatomia do animal" (mesmo que só especialistas consigam diferenciar entre tecidos). No ensino superior, na área de ciências biológicas, costuma-se descer de patamar e praticar até mesmo vivissecção em animais para "ensinar procedimentos médicos" ou "o funcionamento dos organismos". O que fazer quando, por sua escolha ética, você não quer fazer isso?

Existe na lei um recurso para os vegetarianos em cursos como estes, que não costuma ser mencionado pelos professores: a objeção de consciência. Requerindo-a, você estará simplesmente exigindo seu direito de seguir os próprios ideais! Na constituição, ela é redigida assim:

Constituição
Capítulo I
Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos

Artigo 5o
Parágrafo II:
Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.
Parágrafo III: Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
Parágrafo VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Portanto, é obrigação constitucional da instituição de ensino em que você estuda liberá-lo da experiência sem prejuízo de nota ou de presença. Além desse artigo, existe algo mais específico, que é a lei 6.638, de 8 de maio de 1979, complementada pela lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais).
Dos crimes contra o meio ambiente
Seção I — Dos crimes contra a fauna

Artigo 32

Parágrafo 1o: Incorre nas mesmas penas ( detenção de 3 meses a um ano, e multa) quem realiza experiências dolorosas ou cruéis em animais vivos, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
E existem sempre recursos alternativos. Basta procurar, por exemplo, por programas de computador que simulem a fisiologia de animais -- método muito mais eficiente do que a vivissecção. No caso de procedimentos médicos práticos, o uso de bonecos ou pessoas voluntárias (ou modelos computacionais também) é melhor e não fere nem mata animal nenhum.

Para requerir formalmente sua objeção de consciência, você pode usar o seguinte modelo.

 (Universidade, Data)
De: (nome)
Para: (Sugerimos que o destino do pedido comece pela instância menor, como a Coordenação de Curso. O contexto de cada instituição deve ser considerado neste encaminhamento, mas sugerimos fortemente que este documento seja protocolado para oficializar este pedido)
Assunto: Uso de animais para finalidades didáticas na disciplina “XXX
Sabemos que o ato de ensinar vai muito além do repasse de informações; ele compreende principalmente o estímulo ao desenvolvimento de virtudes, que serão propagadas por toda a humanidade. Dentro do curso de XXX, a postura crítica, a ética e a sensibilidade a sentimentos como dor e sofrimento são virtudes essenciais que devem ser afirmadas nos estudantes, objetivando a formação de um profissional humanizado[1], crítico e reflexivo. Para isso, precisamos de um modelo pedagógico no qual esses valores façam parte do real aprendizado.

A universidade em sua essência procura sempre passar bons preceitos e oferecer o que há de melhor, mas muitas vezes, e mesmo que de forma impensada, ela acaba por repetir paradigmas apreendidos que estão permeados por atitudes que nos tempos atuais não mais se configuram como adequados, tendo em vista a grande evolução tanto legislativa como humanística por que vêm passando a sociedade e a humanidade como um todo, no tocante ao respeito aos direitos individuais de cada cidadão. Isso tudo é repassado aos alunos principalmente sob a forma de currículo oculto[2], e acaba por influenciar profundamente seu comportamento e sua formação de valores.
Dentro deste contexto, participar de atividades que envolvam o uso prejudicial de animais para finalidades didáticas, como a participação nas aulas práticas exigida pela disciplina “XXX”, da Yª fase do curso de graduação de XXX, na qual serão feitos (descrever brevemente o que será feito com o animal), seria uma violação de nossa postura pessoal e de nossos princípios éticos, morais e espirituais.
Como não podemos dissociar as pessoas que somos hoje dos profissionais que seremos em alguns anos, acreditamos que manter a integridade de nossos princípios só irá acrescentar em nossa formação como seres humanos e futuros profissionais. 

Buscamos o aperfeiçoamento de nossa formação, e estamos cientes da existência e possibilidade de aplicação de novos modelos pedagógicos baseados num aprendizado técnico de maior qualidade, em princípios mais éticos e humanistas e no respeito à consciência individual de cada estudante. Por isso viemos exercer nosso direito à Objeção de Consciência, recurso que possui respaldo e precedentes legais[3], fundamentado em diversos dispositivos legais, a começar pela Constituição da República Federativa do Brasil que afirma:

Art 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...) nos termos seguintes:
VI – é inviolável a liberdade de consciência (...);
VIII – ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

A objeção de consciência é também contemplada pelo artigo 18, primeira parte, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, da qual o Brasil é signatário: “Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”, e tem ainda o respaldo dos seguintes dispositivos legais:

- Declaração Universal dos Direitos Dos Animais, assinada pelo Brasil em 1978, Artigo 8º:
I – A experimentação animal que implique um sofrimento físico e psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de experimentações médicas, científicas, comerciais ou qualquer outra forma de experimentação.
II – As técnicas experimentais alternativas devem ser utilizadas e desenvolvidas.
- Lei de Crimes Ambientais (9.605/1998), que contempla a adoção de métodos alternativos, conforme seu artigo 32:
Art 32º Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
I – Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
II – A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
- Lei 11.794, de 8 de outubro de 2008, artigo 14º:
III – Sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser fotografadas, filmadas ou gravadas de forma a permitir sua reprodução para ilustração de práticas futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com animais.

Com o advento de novas tecnologias e abordagens educacionais, cada vez mais inseridas no contexto de ensino-aprendizagem, estamos certos de podermos adquirir o conhecimento que a disciplina exige nesse semestre. Em muitos países a tendência está sendo abrir mão de práticas com animais na formação profissional e adotar outros recursos didáticos que não comprometam a mesma. Existem mais de 50 estudos comprovando a eficiência de muitos recursos e demonstrando que estudantes que utilizaram métodos alternativos aprenderam tanto quanto, ou ainda melhor, que os alunos que utilizaram modelos de animais vivos[4]

Acreditamos que estes métodos e materiais possam ser implementados em nossa formação, e apesar de alguns terem custo financeiro mais elevado a curto prazo, sua economia se percebe a médio e longo prazos[5] - são recursos facilmente conserváveis e que podem ser reutilizados por todos os alunos, o que atende a um maior número de pessoas e garante a aquisição do conhecimento, já que permite ao aluno praticar o estudo quantas vezes for necessário.

Cremos que devemos perceber os animais como seres sencientes, passíveis de dor, desejos e direitos assim como nós, e não como meros objetos de estudo sob nosso poder e propriedade. Cremos também que a dessensibilização dos alunos frente à vida, também demonstrada em estudos científicos[6], é incompatível com os ensinamentos de valorização à vida que recebemos no curso. 

Estamos, no entanto, dispostos a estudar o assunto através de outras metodologias que não envolvam o uso prejudicial de animais, garantindo assim que nossas convicções éticas, morais e espirituais sejam respeitadas e que não sejamos prejudicados no aprendizado do conteúdo da disciplina. OPCIONAL E RECOMENDADO: Anexamos, neste sentido, documentos que podem subsidiar e fundamentar este nosso pedido (entre em contato com a 1Rnet para materiais relevantes)

Assim sendo, e contando com os doutos conhecimentos de Vossa Senhoria, solicitamos a apreciação e o deferimento de nosso pedido, de que possamos desenvolver nossas atividades de aprendizagem de forma alternativa, sem a utilização de animais vivos, por se configurar razoável exercício de direito, aguardando vosso retorno, o qual solicitamos a gentileza de que seja por escrito, salientando que nosso único interesse é preservar direitos relativos às nossas convicções pessoais.

Sem mais para o momento e certos de podermos contar com vossa atenção e compreensão, subscrevemo-nos.

Atenciosamente,
(Nome completo, Fase do curso)


 [1] Segundo o educador Paulo Freire, “humanizar-se é não se omitir diante de qualquer situação na qual um ser inferiorizado esteja sendo submetido a qualquer tipo de sofrimento”.
[2] "O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes (...) o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações..." (Silva, 2001:78)
[3] Sendo o mais recente o caso do estudante Róber Bachinski, que defendeu seu direito à objeção de consciência perante a UFRGS e conseguiu, mediante ação ordinária, que seu pedido por métodos substitutivos fosse atendido (processo Nº 2007.71.00.019882- 0/RS).
[4] Lista disponível em http://www.hsus.org/animals_in_research/animals_in_education/comparative_studies_of_dissection_and_other_animal_uses.html
[5] Para um estudo comparativo de custos, ver
http://www.hsus.org/web-files/PDF/ARI/2004_Cost_Comparison.pdf
[6] CAPALDO, T. The psychological effects on students of using animals in ways that they see as ethically, morally or religiously Wrong. ATLA. 2004; 32(1): 525–531.

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Então, se não quiser matar animais em sala só para ver coisas que já se conhece, você já sabe que tem o direito na lei de não fazê-lo sem ser prejudicado. Você pode conseguir mais informações acessando http://www.1rnet.org/objetando.htm e o site do Gato Negro. Lembre-se sempre: mantenha-se fiel aos seus ideais. A integridade é tudo o que nos resta no fim.